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terça-feira, 24 de março de 2015

NO PAÍS DA MISÉRIA

NO PAÍS DA MISÉRIA
Alípio Bandeira
Publicado no jornal “Quo Vadis?” – Manaus-AM
Ano II – nº 183 – Pág. 02 – 17 de outubro de 1903

Uma noite, no Acre, acordei aborrecido e nostálgico: sonhara que o Barbosa, o Lobo e eu fôramos a um rio, do Amazonas tentar fortuna. Barbosa havia morrido. Lobo, no fundo de uma maca imunda, aguardava pacientemente a sua vez. Eu, meditando na queda de tantas ilusões que levávamos, contemplava com uma tristeza infinita aquela retirada lúgubre.
Este sonho foi como uma visão antecipada das misérias que eu devia testemunhar mais tarde na minha permanência de 7 meses na terra da traficância e da febre.
Bem certo é que eu já sabia que o Amazonas é uma miragem e uma pedra de toque ao mesmo tempo, como o são, aliás, todas as Califórnias conhecidas. E se ao contato da água régia do caráter algumas almas de lei hão resistindo e triunfado, duvido eu que da perseguição da miragem alguém haja saído completamente ileso. Sabia isso; e mais que o homem se degrada num trabalho como o da extração da goma elástica, no qual ocupa apenas um braço, em terras onde muitas vezes não tem espaço para andar, num meio em que não pensa, em que não luta, em que não ama.
Ah! Mas quem poderá imaginar o que seja o Acre sem tê-lo visto de perto com atenção e com amor! Contasse o homem o número de vidas que este rio estraga ou devora anualmente, pensasse ao menos nessa dura verdade e compreenderia que fora melhor entregar às bestas feras todos esses seringais imensos enquanto não surgisse uma população capaz de torna-los habitáveis. Mas isso seria apenas uma medida a tomar em relação ao futuro. Pelo que toca ao passado, fora melhor que as águas reunidas das poderosas vertentes que cercam o Acre por todos os lados, houvessem um dia alagado de tal modo aquela terra maldita que nunca sobre ela aparecesse o rasto do homem. Porque não encontrareis em todo o Acre cousa que ateste a atividade do povo sobre o solo. E, no meio dessa quebra da dignidade humana, ides ver o trabalhador, envolto na mais pungente penúria, esforçando-se debalde, por pagar o que deve; o patrão, cercado da mais fabulosa mentira, arrotando milhões que apenas figuram em livros, passar a mesma desgraçada vida cheia de privações e de estupidez. E trabalhadores, e patrões, e mulheres, e crianças, todos tocados, possuídos, escravizados, da mesma tristeza doentia da região, tão bruta e selvagem quanto monótona e bravia.
Essa população de emigrantes, que abandona os seus estados em busca de lenitivo à fome, vai encontrá-la sob outro aspecto no Acre, depois de haver perdido a saúde, a liberdade, a coragem, o brio. Que se há de dizer, efetivamente, de pessoas macilentas, senão que não tem saúde; de indivíduos que se deixa amarrar a um tronco, senão que perderam a liberdade; de gente que odeia as revoluções e não reage contra elas, senão que não tem coragem; de homens que depois de espoliados em mulheres e filhos tratam amigavelmente os autores da sua desgraça, senão que são homens desbriados?
Tal seria a triste situação do Acre se não se devesse acrescentar a tudo isto as eternas contendas que a ganância prepara e desenvolve; o constante perigo de um clima onde ninguém está descansado acerca do que lhe sucederá no dia seguinte; a falta absoluta da mais rudimentar sociedade, a carência completa de alimentação digna de homem.
Não é que o autor destas linhas esperasse encontrar no Acre tipos de honestidade patriarcal; não é que sonhasse com um clima bem-aventurado, com uma sociedade cheia de confortos, com uma alimentação luxuosa em que jamais pensou e a que não deu jamais importância. Mas como se há de viver no meio das mais estranhas traficâncias, num clima traiçoeiro e vário, numa terra onde não há convivência de família e onde a alimentação se reduz a charque, feijão e farinha, tudo do que há de pior nos gêneros.
Esta ainda não é, contudo, a existência no Acre. É necessário juntar-lhe mais as incontinências de toda sorte, especialmente do álcool, que ligadas ao paludismo implacável da região, vão acelerando continuadamente o trabalho de depauperamento, de declínio e de morte. Ao pensar nessa existência infeliz, lamentei muitas vezes que a humanidade estivesse ainda na dura contingência de procurar a vida onde sabe que há de encontrar o aniquilamento; mas não supunha que ela mesma auxiliasse, inconsideradamente, a destruição justamente no ponto em que mais devera temê-la.
Espero e creio que muita gente descubra nas minhas palavras calculado exagero. Não me surpreenderá a maldosa incredulidade dos interessados, nem a ingênua admiração dos que não podem crer naquilo que só se acredita vendo. Somente uma coisa sinto: vem a ser que a minha condição de militar não me permita dizer com franqueza tudo que sei do Acre, do seu povo, de suas revoluções.
Também não escrevo para quem vive no Amazonas e conhece como eu essas cousas. Dirijo-me a outros meios, onde possa vibrar ainda a piedade por um povo tão digno dela, não pelo que vale, senão pelo que sofre.
Sirva este artigo de introdução a uma pequena série em que hei de expor as dolorosas impressões que trago do desolado país da miséria e da morte.

Manaus, 14 de outubro de 1903.

Alípio Bandeira
2º tenente de artilharia
 

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